Escrevo esse texto dentro do meu apartamento na zona norte, o barulho das construções que são constantes nos últimos dois anos, são de enlouquecer, a poeira que invade o quarto obriga uma faxina atenta e janelas fechadas. O tempo está seco, duro, frio. E o cartaz da empreiteira dificulta ainda mais a entrada do sol, que será extinto depois que o prédio subir.
Com a vinda da família real para o Brasil, duas grandes instituições foram fundadas o Banco do Brasil e a Polícia Militar. Museus com nomes de bancos, galerias privadas com incentivo de bancos, lugares públicos protegidos por polícia armada reprimindo o lugar público, parques fechados e gradeados.
Me sinto sufocado nesse apartamento.
No ano de 2019, tomei um enquadro. Nada de novidade, afinal, quem é que nunca foi enquadrado no Brasil?
Já tinha sido enquadrado outra vez na rua da minha casa, na frente de uma escola, adivinhem, privada.
O segurança veio ver o que eu estava segurando na mão, um saquinho de balas jujuba, estava sentado no meio fio, comendo minhas balinhas, esperando minha mãe chegar do trabalho, o ano era 2005, num bairro de classe média de São Paulo, nos governos da esquerda.
Já em 2019, esse enquadro foi bem semelhante, estava sentado na escada da biblioteca pública, Nuto Santana, uma biblioteca com um lindo jardim e crianças tendo aula de artes, eu, ministrava aulas de criação literária no local (6 meses), tudo acordado com o pessoal da Biblioteca, com a diretora ou seja lá o nome da função da responsável, já que é uma pessoa só pra fazer tudo, o nome dela era Katianne, tudo certo, depois de algumas conversas, depois de alguns muitos “nãos” e não respostas de outros espaços públicos para um projeto voluntário, eu só precisava de um espaço.
E esse sujeito, um guarda, um segurança, segurança de que? Dos livros? Trajando uma farda cinza, com coturno, aspecto de soldado, jeitão de segurança de cofre-forte, boné preto, grande, maior do que eu e mais forte. Me disse que eu não poderia subir na biblioteca com meu material de trabalho, no caso uma mochila, alguns livros e papel e caneta.
Nossos encontros eram bonitos, de partilha de palavra, e o segurança estava barrando minha entrada, me enquadrando em alguma orientação previa que ele recebeu, não acho que tenha sido nada pessoal, enquanto escrevia esse texto me lembrei de outras situações de abuso por seguranças privados, assédios, violências, a privatização dos metros, as bibliotecas estaduais do PSDB, os parques de São Paulo que não se pode tirar foto, nem levar o cachorro sem coleira, regras parecidas com o condomínio privado que resido atualmente. Parecidas com regras das empresas privadas de serviços diversos. Aquelas coisas, não poder levar marmitas, nem usar bermuda, aquelas coisas, sem debate, sem diversidade ou diversão.
A gente é condicionado a buscar sentido no enquadro, não consigo perceber, não naquele lugar, naquela situação, estaria eu no lugar errado? Qual é o meu lugar?
Digo pra ele que não estava fazendo nada de errado. Meio sem jeito, sem palavras certas. Tentando entender o enquadro de maneira racional.
Quando os punhos dele estavam se serrando os meus também estavam. Ficaríamos ali, quem sabe sangrando no espaço público, quem sabe agoniados, quem sabe? A disputa por espaço. Pelo espaço. O público versos o privado, nessa equação nebulosa da cidade de São Paulo.
Percebendo essa tragédia, minha companheira que estava chegando entrou no meio da confusão e parece ter desbaratinado o olhar de fúria do homem. Ou fragmentado, agora, ele teria dois alvos, duas pessoas.
Eu só repetia que era trabalhador, sou trabalhador, sou trabalhador.
E fiquei.
Alguém da biblioteca chegou pra separar, segurar o sujeito, deixar no ar, diluir a situação, a turma do deixa-disso. A biblioteca não se pronunciou nem a favor de um nem de outro, nada pode fazer, nada sabe fazer.
Lembro de alguns argumentos do pessoal da biblioteca, dizendo que os seguranças lidam com pessoas em situação de drogadição e moradores de rua, que lidam com adolescentes e arruaceiros, e por isso eles tem um treinamento mais bruto. Não podem permitir que as pessoas usem a biblioteca de forma que não condiz com a diretriz.
Diretriz de quem? Do prefeito? Do governador? Da empresa de segurança? Do racismo?
A desculpa foi pelo engano. Feito uma ligação equivocada. Deu azar, esse ódio não era pra você, esse espaço não era pra te ofender, o espaço é para poucos, você pode fazer parte, só não chame os mendigos, os drogados, os sem teto. Era um mês frio, sem café, sem leite, sem proteção, mais um dia.
Os colegas chegaram, falamos sobre isso, falamos sobre outras coisas e fiquei ainda um tempo frequentando aquele espaço público até a pandemia chegar e interromper nossos encontros.
Outro dia voltei à Biblioteca Nuto Santana, parece que tudo está igual, o jardim um pouco menos cuidado, os seguranças na porta, os livros lá pegando poeira e uma senhora forçando a vista pra achar minha matricula no sistema. Tinha expirado.
Marcelo da Silva Antunes nasceu em São Paulo. É Autor de VIVAVACA -2017, SP: Sem Patuá (editora Patuá) – 2018, Outros Cortes (Selo Borboleta Azul) -2019, Manifesto da hora que o couro come (Selo Borboleta Azul) -2020, e do livreto Velho, Velho Testamento – 2019. Editor do selo literário Borboleta Azul e da Revista Agagê80 (Brasil/Portugal) agitador cultural e orientador de escrita criativa. Tem textos publicados em diversas revistas no Brasil e no Peru.
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