Os tacos soltos ainda me incomodam
Vejo o velho abajur sem lâmpada da mãe e o cobertor xadrez que ganhei de aniversário.
No quarto, caixas. Nas caixas, cartas. Vejo os envelopes amarelados. Ortografias variáveis, todas são minhas, ou eram minhas.
Ninguém que escreveu tantas cartas pode ter sido feliz.
Quem é que escreve cartas ainda hoje?
São Paulo xx de X de 19XX.
Pai,
Queria te contar sobre as coisas. Fui demitido do trabalho. Não aguentava mais ficar entregando correspondências, na minha idade ser office boy não é normal, tenho idade para ser pelo menos ajudante geral. Logo arrumo outro emprego.
Escrevo esta carta pra falar sobre os estudos, vou parar o curso, sei que o senhor acha importante ter uma profissão, uma cadeira pra me defender como dizia, mas, ainda queria ser motorista, vou investir nisso, fazer um curso e quem sabe não consigo dirigir ônibus um dia. Sei que o senhor gostaria de ter sido motorista de caminhão.
Elétrica definitivamente não é pra mim. Em seis meses de curso só aprendi a soldar os fios e fazer umas ligações simples. Tomei choques e esporros. Não vou mais não. Talvez o senhor não entenda, ache que sou maluco por largar um curso na escola técnica de São Paulo. Estudar não é pra gente.
E você, como é que tá?
Olhei uma foto sua, acho que me pareço com você, igual você se parece com o seu pai.
Quando quiser aparecer por aqui, tô morando na casa da minha vó.
De Seu querido Filho
Meu pai nunca respondeu as cartas que mandei. Parei de mandar.
Relação de homem é assim mesmo. Já me diria o próprio, meu pai. Homem prático, leitura pra ele era só dos resultados do jogo do bicho e alguma palavra cruzada dos jornais na hora de cagar. Criado para ser chefe de família se preocupava muito com dinheiro e dispensa cheia, essas eram suas metas. “Um homem sem dinheiro no bolso, não é um homem”.
Ele era ligado em matemática, gostava de fazer contas. “Só confio em Deus e que 2+2 são 4”, bradava depois de algumas cervejas para os quatro ventos.
Sou capaz de ver suas tacadas na mesa de sinuca. Ele sabia jogar o jogo, dizem até hoje que ele foi o maior campeão da zona norte. Disputava campeonato e tudo.
Fiquei boa parte da infância debaixo das mesas de bilhar, atrás do balcão do bar da esquina, era lá o meu passeio de domingo, mesmo depois do divórcio. Ele se divorciou da família toda, não posso reclamar da ausência física, até uns 13 anos ele aparecia de vez em quando, pelo menos aparecia. Só lembro de morar com ele até os 6 anos. Minha memória guarda coisas que não sei o porquê, consigo ver seu rosto, sua barba e sentir o cheiro dos perfumes. O cheiro dele. Todo carro e camisa de futebol tem o seu cheiro. Guardei uma amarelinha da seleção de 82 até pouco tempo atrás, vendi num leilão, valeu bem menos do que eu imaginava, ajudou pagar uma conta.
Ele só usava camisa de botão ou de time de futebol, regatas no calor e jaqueta de poliéster no frio, calças eram todas jeans ou de moletom, cinto tinha um por vez, usava até esgarçar o cinto, o mesmo tratamento era com os sapatos. Só usava sapatos e algumas vezes sapatilha, raras vezes. Meias brancas de algodão e meias pretas sociais. No bolso das camisas um clipes, um elástico, um alfinete, alguns palitos e uma escovinha pra pentear o cabelo.
Todo bêbado tem o seu hálito. Toda camisa de botão fede a pai.
No bar eu gostava dos ovinhos coloridos e de tomar guaraná. Ele era do churrasco, cerveja e samba. Comprava briga pelo seu time, por seus parceiros de sinuca e defendia até vagabundo contra a polícia se necessário, foi preso uma vez por desacato, perto da época do carnaval, encarava os milicos junto com os sambistas. Época do carnaval na Tiradentes. Ele sempre contava da porradaria que rolava com os guardas, era soco na cara e madeirada, logo depois bebiam no bar, as vezes no mesmo bar que os caras.
Não sei jogar sinuca até hoje, não me faz falta nenhuma.
Marcelo da Silva Antunes nasceu em São Paulo, no dia 13 de junho de 1992, dia de Santo Antônio e de Exu. É Autor de VIVAVACA -2017, SP: Sem Patuá (editora Patuá) - 2018, Outros Cortes (Selo Borboleta Azul) -2019, Manifesto da hora que o couro come (Selo Borboleta Azul) -2020, e do livreto Velho, Velho Testamento - 2019. Editor do selo literário Borboleta Azul e da Revista Agagê80 (Brasil/Portugal) agitador cultural e oficineiro de escrita criativa.
Esse folhetim é um oferecimento Borboleta Azul, reavivando um formato muito popular no Brasil e no mundo. Ele tem como objetivo semear a leitura e despertar leitores, grandes nomes da literatura já escreveram folhetins como; Machado de Assis, Lima Barreto, José de Alencar entre outros, o texto era publicado em jornais.
Quem gostou da novela, pedimos que divulguem, espalhem por aí e se tiverem interesse em apoiar o trabalho do artista, fazer uma transferência bancaria, (como uma forma de comprar o folhetim) com qualquer valor (todo valor será repassado integralmente ao artista). As pessoas que colaborarem terão seu nome nos agradecimentos de cada capítulo (opcional. Se quiser seu nome, mandar e-mail pro [email protected] com seu nome), até o final da novela como uma singela homenagem.
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Dados do artista: Marcelo da Silva Antunes
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