Quando o nome apareceu não me liguei, OTÁVIO, não lembrava desse nome. Otávio, esse era o nome do motorista, quantos Otávios não conheci, me lembrava de uma meia dúzia, um aluno da minha sala, um rapaz que jogou bola comigo, um garoto irmão de alguém, um sujeito primo do meu primo, um ou outro companheiro de trabalho. Esse nome me deu aquela gelada na espinha . Um dejavu. E o motorista chegou, com a placa indicada no aplicativo, um carro branco, eu não sei qual o modelo, não conheço modelos de carros.
Otávio me cumprimentou, eu o reconheci pela voz, ele não me reconheceu, eu estava de óculos escuros e talvez eu tenha mudado bastante. O tom da voz foi que caguetou. Aquela voz anasalada, como se estivesse cansado, ele sempre teve aquele jeitão de articular uma frase, era ele. Um antigo companheiro de trabalho e de curso. Não sabia se deveria puxar assunto, não sabia se ele também se lembraria de mim, as pessoas são facilmente esquecidas, eu tenho uma memória que é um castigo, acumulo rostos, vozes, cheiros e imagens, eu não esqueço de nada.
Otávio era um menino prodígio, todos nós éramos, ao menos isso foi vendido pra gente, lá em 2010, quando o Brasil era o país do futuro, nós éramos o país do futuro, muito futuro, seríamos uma geração que daria um salto de qualidade, um país da educação, da diversidade, da inclusão.
Otávio era filho de metalúrgico, tinha feito faculdade pelo Prouni, estávamos estagiando em uma multinacional, passaríamos ainda por grandes empresas até 2014, ele já tinha feito Trainee, tinha sido Jovem Aprendiz, fazia curso de inglês no FISK, era o futuro. Não seria mais mão de obra qualificada barata. Eu também não teria mais que trabalhar nos empregos que meu pai trabalhou, repositor, auxiliar de serviços gerais, faxineiro, entregador de panfletos, descarregador, motorista, nós agora faríamos trabalho intelectual, lidar com computador, não mais com caixas pesadas, seriámos uma geração que venceria. Dois meninos pobres que agora seriam gente. O progresso havia chegado. Escaparíamos de vez da miséria, salvaríamos as próximas gerações.
Eu e ele nos falávamos bastante na época do trabalho, por idade e identificação, éramos a cota jovem da empresa, os meninos que vinham de ônibus, nós e mais umas duas meninas, toda empresa contratava jovens, jovens pobres, jovens bolsistas, estágios tinham de monte, o país crescia. Eu tive diversos empregos, trocava de seis em seis meses, Otávio ficou mais, tentou fazer carreira, nos perdemos no mercado de trabalho, depois daquele emprego não nos encontramos mais, acompanhei um pouco dele pelo Facebook, até as eleições de 2018, talvez. Sem trocar se quer likes.
Ele era ambicioso, falava de progresso, de mérito, queria ser rico, já tinha um consórcio quando nem tinha vinte anos, tinha planos de comprar um apartamento na planta, era cristão, queria casar na igreja, tinha um futuro todo desenhado, por ele mesmo, pela igreja, por seu pais e por sua família. Sua noiva também estava no caminho desse projeto de país, um projeto límpido, claro, objetivo e tranquilo, um futuro feliz, um castelo, tudo seria consumado e consumido.
Parei de interagir com Otávio nas redes sociais em 2014, ou um pouco depois, foi quando ele começou a espalhar notícias falsas sobre a presidenta Dilma, o ambiente político passou a fazer parte da vida de Otávio e de meus amigos do futebol, do trabalho e da faculdade. Os memes foram se popularizando, piadas e o surgimento do Bolsonaro nas redes, como um grande e engraçado sincerão, o que falava o que Otávio queria dizer. Será que ele queria dizer isso? Tínhamos dúvidas. Bolsonaro cobrava seus direitos de país do futuro e dizia que o passado que era bom. Otávio que era a geração do progresso, passou a acreditar que o progresso era o passado, que era preciso a volta da ditadura militar. Nessa altura já não convivia com Otávio. Rompi com todos os ciclos, pedi todas as contas dos empregos, desisti de ter um emprego fixo, nunca tive um sonho de comprar um carro ou uma casa, nem de casar e ter filhos, ou de viajar pra Orlando. Eu queria escrever e só. Ah, os jovens.
Acho que ele não se lembra de mim, será que ele mudou muito, será que ele se deu bem? Procuro no Facebook, não tenho mais ele, ou devo ter bloqueado, excluído, a gente faz isso, a gente excluí pessoas da nossa vida digital. Ele ainda é o mesmo, um pouco mais careca, bastante careca, deve estar fazendo tratamento pra calvície, muitos dos meus amigos dessa época fazem tratamento pra calvície com menos de trinta anos. Na vida real não é possível excluir e bloquear, mas eu nem sei mais qual vida é real. Mesmo excluindo Otávio de minha vida digital, ele apareceu aqui, está me transportando, se ele sentisse raiva de mim como demonstra nas redes digitais, dos petistas, da esquerda, dos LGBTQs, das mulheres, das pessoas negras, ele poderia me agredir, me matar, ou pelo menos ter cancelado minha corrida. Não tenho medo dele, esse tipo de gente só é valente na internet. O Brasil nesses dez anos ficou muito bélico, principalmente nas redes digitais, onde todo mundo é corajoso e fala o que pensa. Infelizmente isso também extrapola pra fora do digital, a violência como inclusão política foi ficando cada vez mais forte nos últimos tempos.
Eu me exponho muito, as pessoas me conhecem, sabem onde eu moro, essas pessoas que me agridem na internet, em sua maioria, um dia já foram meus amigos, companheiros ou conhecidos.
A vida afastou, convivo em um ciclo muito diferente, uma vida marginal, sem nenhuma romantização, em algum lugar de uma bolha, num cantinho, um lugar que mais ou menos sei onde piso, mas convivo com outras bolhas, transito entre lugares, o que me faz ser um estranho. No meio artístico me sinto muito avulso, sou o mais novo, o menos endinheirado, o menos graduado por universidades, o menos engajado institucionalmente e, no convívio familiar e de amigos de infância, sou o que eles dizem “querer ser diferente”, o estranho, fico de lado também, fico sem assunto.
Otávio está ouvindo Jovem Pan, eu só escuto essa rádio quando pego Uber. Ele não percebe que eu estou olhando pra ele. Depois de alguns minutos ele parece me olhar e procurar alguma informação. Me medindo. Ele troca de rádio, coloca em alguma que toca música pop, sobe mais uma e acha uma música evangélica. Reparo no adesivo da igreja Bola de Neve no carro, e a capinha do celular dele é do Brasil.
Eu pergunto se ele algum dia trabalhou na multinacional X, ele me olha e diz, você é o Marcelinho?
Ele é simpático, me conta sobre sua vida e não pergunta nada sobre a minha, nada. Ele me diz que casou, “não com aquele vagabunda que ele namorava na época que trabalhávamos juntos”, ele disse que mulher direita estava difícil, disse que a Bruna, sua ex-noiva, virou feminista, e ficou estranha, raspou o cabelo e começou a falar que ele era machista, parou de ir pra igreja e terminou com ele por causa de política. Eu não digo nada. E ele não para de falar, desabafar, vomitar sua vida pra mim. Ele não sabe, não lembra ou ignora que eu sou escritor.
Diz que depois que saiu da empresa ainda fez mais um estágio num banco, depois foi demitido, abriu sua própria empresa de vendas, importação e exportação, viajou pros EUA, até morou lá por uns tempos, voltou pra cá porque sua mulher ficou grávida, falou que só está esperando o filho nascer pra ir embora, que esse país não vai pra frente, que os governos de esquerda quebraram o país e que o Lula é um ladrão. Eu não digo nada, estou quase chegando no meu destino.
Ficar calado em corridas de motoristas de aplicativos parece uma coisa certa, essa tensão entre motorista e passageiros é quase uma regra. Não sabemos quem estamos pegando e eles também não sabem. E a violência como afirmação política é um perigo dentro de um carro. Ele também não quer me ouvir, não parece ser o tipo de pessoa que gosta de ouvir e de conversar. Sempre foi assim. Me lembro de tentar falar com ele sobre cotas, CLT e sobre livros de poesia. Às vezes, se comunicar é cansativo. Comunicação é um exercício cansativo, ainda mais com tanto ruído.
Ele continua falando que ele não gosta de política, que por ele não tinha nada e depois diz que estamos vivendo o fim dos tempos, que tudo está muito violento e que ele pensa em comprar um revólver, que se alguém tentasse assaltar ele, esses meninos que usam craque, ele dava um tiro na cara dessas pessoas sem dó. Porque ele trabalha muito pra ser roubado por marginais. Que o carro, ele nem terminou de pagar ainda, que ele mora com os sogros e que o preço do IPhone dele foi um absurdo no Brasil. Que a gasolina é muito cara e que no Nordeste é que tá bom, pois os governos são petistas. Ele me pergunta se eu ainda falo com alguém da nossa época. Eu digo que nunca mais encontrei ninguém. Ele diz que ainda fala com muitos, que os chefes ainda jogam bola com ele e fazem um churrasco, me convida pra colar com eles qualquer dia, pede meu WhatsApp, fala pra gente marcar uma cerveja e depois cala. Ele olhou pra minha cara, deve ter entendido, ou não. Deve ter se recordado ou visto minhas tatuagens e meu cabelo descolorido, minha calça vermelha e minha barba por fazer, não sei se ele repara nisso, nem isso são marcadores de alguma coisa, acho que a gente só enxerga o que quer, mas quem nos odeia sempre acha motivo e cara pra odiar, talvez nos reconheçamos pelo cheiro. Eu chego no meu destino. Saio do carro um pouco assustado, afogado com tantas informações e um texto pronto pra escrever, já penso nos primeiros parágrafos, ignoro o pedido dele de passar meu número, digo obrigado e saio sem olhar pra trás. Sinto um calafrio, será que ele se lembrou de mim? Ele agora sabe onde eu moro.
Marcelo da Silva Antunes nasceu em São Paulo. É editor do selo literário Borboleta Azul e da Revista Agagê80 (Brasil/Portugal) agitador cultural e orientador de escrita criativa. Tem textos publicados em diversas revistas no Brasil e no Peru (Universidade Nacional Maior de São Marcos). Publicou diversos livros entre eles, VIVAVACA -2017, SP: Sem Patuá (editora Patuá) – 2018, Outros Cortes (Selo Borboleta Azul) -2019, Manifesto da hora que o couro come (Selo Borboleta Azul) -2020 e Tragédias (Selo Borboleta Azul) – 2022.
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