É sábado, estou em casa com minha esposa, Aline, estamos recebendo uma amiga, bebendo e celebrando a vida, falando sobre miudezas, sobre esse país triste, sobre esse momento político conturbado, brindando, escolhendo as frutas pra caipirinha, cortando o kiwi, comendo uma comida fresca, rindo. Embriagado de alegria e de saquê. Vou pra cama rodando. Acordo com a garganta pegando, um pigarro, sinto uma gosma, um arranhar a garganta, um incômodo.
Domingo é dia de festa, vou para um aniversário, lugar distante, na outra ponta da cidade, vou de metrô, estou bem, fora essa garganta que incomoda, mas não chega a doer, estou bem, vou levar uma bebida, uma Jurubeba Leão do Norte, não vou beber gelado, vou bem agasalhado, tudo certo, é o combinado.
Festa ótima, outro grande dia de matar saudades, recolocar a vida nos trilhos, rir com os amigos, beber, compartilhar as angustias, conhecer os “filhos da pandemia”, um casal de amigos teve um filho e eu não conheci, o menino já está quase andando, não teve chá de bebê, nem batizado, nem aquela bebedeira pra comemorar, nada, só os parabéns por whatsapp. Foram 2 anos sem ver o nascimento de vidas.
Na volta, o corpo está tão cansado, que penso ter exagerado na bebida, uma garrafa de jurubeba e alguns drinks de whisky que apareceram, já não tenho mais aquele pique de garoto, de virar carnavais e sextas-feiras, o corpo já está cansado, durmo cada vez mais cedo, e meus olhos estão cada dia mais e mais arriados.
Em casa o mesmo ritual, a garganta pega, consigo sentir um catarro se criando.
Dessa vez a febre vem. Sinto muito frio, muito frio, de repente. Nenhum cobertor na casa dá jeito, são quatro, todos pesados, ainda nem estamos no inverno. A tosse parece aliviar a garganta, mas dói a cabeça, dói tudo, estou moído, não deveria ter bebido tanto, nesse momento ainda suspeito que esse incômodo possa ser da bebedeira, uma ressaca, nunca tinha misturado jurubeba com whisky, será essa uma combinação tal qual vinho com cerveja, ou rum com catuaba? Não parece. Vou ter que descobrir essa na próxima.
Uma das piores noites dos últimos anos, e olha que foram noites terríveis nesses últimos anos no Brasil. Eu não tenho tanta febre, não quando fico resfriado, sempre fico resfriado uma vez por ano, uma coisa leve, um xaropinho e pronto, e não faz nem 15 dias que me tratei de uns catarros, tomei uns antibióticos. Voltei a jogar bola, já estava voltando a correr, e me vem outro resfriado, outra gripe, que fase, minha imunidade deve estar ruim, o que fazer, tomar vitamina C, D, E? Esse é um pensamento que passa, longe do conhecimento cientifico, xaropinho e laranja descascada não fazem mal a ninguém.
A febre é controlada por um remédio. Dipirona. O incômodo passa. Mas o corpo está cansado. A suspeita de covid é pensada pela primeira vez em casa, minha esposa levanta a bola, talvez eu esteja com covid, mas será? Logo agora, depois de todo esse tempo?
Liberou tudo, sem máscara, o trem cada vez mais cheio, e devo admitir, relaxei, encarei a vida como se não houvesse amanhã, tinha uma sede, uma sede, encontrar pessoas, lançar livros, praticar esporte, sair por aí, ver a rua, ainda que a rua não seja mais a mesma, o mundo nunca mais será o mesmo.
Moro perto de um posto de saúde, uma UBS, talvez eles façam testes de covid, talvez seja algum outro vírus, influenza, algo assim. Dou uma chegada até o posto. O atendimento é padrão atendimento de posto, o segurança te atende, o que já diz muito sobre o Brasil, você é atendido por seguranças, que informam que não é possível fazer teste ali, que deveria ir até o Tremembé ou ao pronto-socorro de Santana. Talvez não seja pra tanto, penso. Desanimado com a saga pra fazer um teste, e contaminado por uma preguiça e um cansaço.
Melhor prevenir do que remediar, nesse caso, melhor remediar, prevenção não existe na saúde pública, e nem na privada, aqui, não tem tempo pra saúde, nem educação, é só tratamento de sintoma, ratos de laboratórios.
Ainda com febre vou até a UPA (popularmente conhecida como unidade de péssimo atendimento). Já na porta um garoto de uns onze ou doze anos vomitando, uma fila gigante, e sem bancos pra sentar. Segunda-feira é triste pra saúde. Pego uma senha com números e letras, digo que estou com suspeita de covid. Pouco importa pra eles, estou no fim da fila, tempo médio de atendimento, duas horas, ninguém mediu minha febre, nem remediou, nada, fico de pé por uns quarenta minutos, não aguento, sento no fim da fila pra esperar minha vez, sem ver ou ouvir o painel que chama. Chama?
Depois de duas horas vou até a recepção, perguntar se já me pularam, ou se ainda vai demorar. A moça da recepção diz que só tem um médico. Não me surpreendo. Eu perdi o respeito pelos médicos nessa pandemia, perdi qualquer admiração ingênua que sustentava, o sucateamento da saúde é um projeto construído com apoio dos profissionais médicos, isso é fato. Eles trabalham pra indústria farmacêutica. Eles servem ao dinheiro.
Cansado volto pra casa, sem chance. Ver pessoas esperando sua vez no posto, parece quando o trem quebra, é aquela feição, aquele olhar das pessoas, parecem lutadores de MMA nocauteados, só esperando o gongo. Talvez alguns ali só estejam tentando matar um dia tedioso e insuportável de trabalho (não julgo), alguns, estejam ali pra tentar se prevenir, outros estejam assustados, outros perdidos, e o menino que está vomitando, quanto tempo ele ainda vai ter que ficar na fila pra ser atendido?
O tempo é duro com incômodo, a vida é chata demais na burocracia de um posto de saúde, o vírus da linguagem e das imagens circula pelos corredores, com esses a gente aprende a viver, sabe levar, tenta remediar, vai dosando. Mesmo que incomodado. Ficar doente é um clichê da porra por aqui.
No dia seguinte vou repetir o mesmo processo, agora no pronto-socorro de Santana, esse posto que já faz parte da minha história, quantas vezes não fui atendido e ou passei por lá, é um lugar que já falei em outros textos, é um lugar icônico na Zona Norte.
Pra não alongar a história, o atendimento é padrão, duas horas, espera, demora, cansa. No P.S, agora reformado, tem pelo menos cadeiras pra sentar, sistema de triagem, aquelas coisas, comparado com a UBS e a UPA é um atendimento nota 10.
Na fila o pensamento que me contamina é pensar que estou com covid, nessa altura do campeonato as chances são grandes, penso no que perderei, serão dias afastados, sem festas, sem encontros, perderei um aniversário e uma festa junina, o que meus amigos vão pensar? Perdi pra doença, o que os outros vão comentar? Que eu abusei, que eu sai pra festa, que eu fui no estádio de futebol, que eu joguei bola, que eu não me cuidei. E o que adianta ter ficado todo esse tempo guardado? É um discurso fácil do governo brasileiro, do chefe do executivo e da opinião geral, caio nessa, sou infectado pela tristeza, pela solidão. Na doença a gente fica só, a dor é impossível de compartilhar, a dor é muito forte.
A covid e como lidamos com ela devia ser compartilhada, devemos sentir uma dor coletiva, dividir esse fardo, sofrermos juntos. Nos curarmos juntos. É uma doença social.
Deu positivo, estou com covid. E agora?
Minha preocupação é se contaminei alguém. Alguma criança? Algum amigo, um parente, um vizinho, alguém? Será que contaminei alguém. Mando mensagem pra algumas pessoas, os que tive contato recente, os conhecidos, com um sentimento de fracasso, de derrota, um incômodo muito grande, uma fraqueza, o que posso fazer?
Nada posso fazer. A não ser escrever sobre meu incômodo e minha dor.
Marcelo da Silva Antunes nasceu em São Paulo. É Autor de VIVAVACA -2017, SP: Sem Patuá (editora Patuá) – 2018, Outros Cortes (Selo Borboleta Azul) -2019, Manifesto da hora que o couro come (Selo Borboleta Azul) -2020, e do livreto Velho, Velho Testamento – 2019. Editor do selo literário Borboleta Azul e da Revista Agagê80 (Brasil/Portugal) agitador cultural e orientador de escrita criativa. Tem textos publicados em diversas revistas no Brasil e no Peru.
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