Mulher: Um produto para ser consumido fresco
Fresh, não é só um filme sobre aplicativos de relacionamento
Fresh é um thriller dirigido por Mimi Cave, escrito por Lauryn Kahn. E de antemão já associo a Carol J. Adams, com seu estudo em “A política sexual da carne”. O filme me tocou em pontos sensíveis que, ao pesquisar por críticas após vê-lo, não encontrei em outras vozes. Como não creio ser uma percepção única vou pincelar alguns pontos por aqui.
“Você só pega mulheres?”, “Sim, é a melhor carne”.
Mulheres são pedaços de carne com vestidos rodados. O galã do aplicativo de relacionamento, Steve, já dá a letra de que Noah ficaria muito mais bonita em roupas femininas, logo a presenteou com um vestido rosa para seu jantar no cativeiro. Mesmo assim, foi em um supermercado, com roupas largas, de noite, que foi abordada por ele. Lugar e hora ideais para se encontrar moças solteiras e sem família, a vítima perfeita, indefesa.
Devo estar indo rápido demais, se você não assistiu Fresh e ainda não te convenci ou se já assistiu mas achou só mais um thriller cliché e até mal feito, vamos aos detalhes.
Noah mantém sempre informada sua amiga Ann, que é a representação de seu instinto, como o grilo falante do Pinóquio, o irmão mais velho no conto Barba Azul, o instinto que não queremos ouvir, mas que sempre nos salva afinal de contas, não é mesmo Clarissa Pinkolas?
O patriarcalismo nos molda e é sobre isso e tá tudo bem (contém ironia). Steve dança, é carinhoso, bem vestido e diz não comer carne de animais, no primeiro encontro que tem com Noah. Deve ser o par dos sonhos. Tudo ia rápido demais, o que poderia dar errado? Ann alertava para que a amiga não fosse numa viagem secreta com um cara que acabou de conhecer.
Dopada, Noah acorda presa por uma corrente num quarto trancado como um cativeiro de luxo, escuta sem rodeios que está ali para servir ao homem – aos homens, o que logo se descobre.
Sua carne será cortada, embalada e vendida fresca para um seleto grupo de ricaços, é preciso que se mantenha viva para ser mais fresca.
Steve sustenta um negócio que envolve cortar pedaços do corpo de mulheres, selecionar cortes nobres e embalar junto a pertences íntimos da vítima, mais foto, mandando em caixas caríssimas a homens, para terem um jantar de milhões.
Somente homens, comendo mulheres. Somente mulheres, servindo homens.
Steve não come carne animal, que é suja, malfeita. Carne da mulher, ah, essa sim é muito boa. Comer é prazer, cada recorte de fotografia e o design do som do filme dançam e seduzem. É uma necessidade comer carne?
Não, é o poder do homem que olha a foto da mulher, cheira sua calcinha e morde um pedaço de peito cozido ao ponto, a fatia mais cara do corpo.
Se você que está lendo é mulher, sabe o quão constrangedor é correr sozinha na rua, passar em frente a uma obra, cortar uma roda de conversa entre homens ou sentar na mesa de um bar, já ouviu até sugarem a baba, assoviarem, falar que seria comida. Já se sentiu um objeto, um pedaço de carne pendurada em um açougue. Se é homem, talvez já tenha estado do outro lado. Além disso, a imagem da mulher em propagandas já foi, e é ainda, colocada de maneira sexualizada como um animal, até comparada a exposição de vacas e porcas prontas para o abate.
Voltando ao filme…
Ann, a consciência adormecida de Noah, a amiga inteligente, quebra mais um fator normativo, talvez pouco explorado no filme, de ser bissexual. Descobre a identidade de Steve e vai até a casa dele, encontra sua família, esposa e filhos. Sua esposa pede que ela saia antes da chegada do marido, mas logo é apanhada. Descobre-se que a esposa faz parte do esquema, no passado vítima, hoje agressora. Porque quem não toma consciência de oprimido torna-se opressor.
Com expertise e muito sangue frio, Noah percebe que pode usar seu corpo e mente de mulher para alimentar os desejos de seu agressor, manipulando ele a cada dia, come a carne que sofre, de mulheres como você, para se pôr como igual. Em um plot twist a fim de agradar à torcida telespectadora, Noah arranca o pênis de Steve com a boca, seu pedaço de carne. Na luta por sobrevivência, Noah, Ann e Melissa (outra mulher em terceiro plano da trama, no cativeiro) fogem para a floresta – lugar de refúgio e reencontro da mulher selvagem despertada de dentro delas. A esposa, sócia e comparsa, é representada pela figura de uma mulher branca e rica, está prestes a matar Noah, mas Ann, mulher preta e forte (treina boxe), a impede.
Fresh termina com uma mesa redonda de homens brancos velhos ricos se alimentando das carnes frescas das mulheres.
Aline Macedo nasceu em São Paulo, em vinte e cinco do cinco de noventa e cinco. Formada em Comunicação Social pela FAPCOM (2017), é designer e artista gráfica, pesquisadora da imagem e social, produtora editorial e escritora. Publicou zines e participou de antologias desde 2018, lança o primeiro livro independente em 2021, o livro das coisas que nomeiam o livro das coisas.
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