Minha vó sabia fazer simpatias, ler cartas e escrever, era conhecida no bairro, escrevia cartas pras pessoas, sonhou em ser professora, alfabetizou minha mãe, alfabetizou várias crianças do bairro, benzia o filho do padeiro toda semana. Meu vô nunca deixou ela trabalhar, fez alguns bicos, costurando fardas e capas nos anos 50. Lembro de ficar brincando de bonecos nos seus pés, ouvindo o ritmo da máquina, escrever cartas deve ter sido influência dela, não me lembro, sempre associei essa mania com minha mãe. Minha vó fazia por algum dinheiro, pra comprar algumas coisinhas – calcinha, doce pros netos, linha pra máquina –, seu marido achava vergonhoso sua mulher trabalhar, ele comprou essa patente de homem da casa, herdou de seu pai, que herdou de seu avô, sorte eu não ter tido filho. Tentou passar pra mim, que sou frágil demais pra carregar uma mulher, tentei com Luciana, mas nunca consegui.
Deolinda escrevia cartas pra desconhecidos, me dizia que realizava sonhos, que esse era seu papel, muito católica queria ser catequista, nunca conseguiu por sua timidez. Se inscreveu num curso de modelo de roupa, pra fazer vestidos e casacos, minha mãe ajudou com o dinheiro, nunca foi, seu marido nunca soube disso.
O sonho da família era ser família tradicional, manter aparências, ninguém imagina que o homem da casa, bata nas mulheres, beba, fume e jogue pratos na parede.
De casa só conheciam o homem de Deus, católico e caridoso.
Cansei de rezar pra Deus pra ele tirar minha vó daquele inferno, rezei muito, pedi, nunca entendi, uma mulher tão bondosa casada com um monstro daqueles, esteve sempre ao seu lado, até na doença, nunca vi ela se enfurecer e jogar um copo no chão, nem levantar a voz em uma discussão.
Ele ficou muito ruim, de cama. Ela todas as noites fazia sopa quente, tirava febre e dava os remédios na boca. Ficou bom, forte, corado, cortou o cartão da conta conjunta deles, que ela nunca usou e disse que ela quis matá-lo. Sou um fraco, nunca pude impedir as agressões, presenciei tapas e chutes, gritos e ecos de seus gritos. Eu só chorava, só choro.
Minha vó queria ser legal por nunca terem sido legal com ela, só sua primeira patroa, ela dizia com muito carinho por uma dona de casa que permitia que ela comesse à mesa. Faxineira comia no quintal no tempo dela. Mãe era grata aos seus professores que ensinaram ela com carinho. Pra ela escrever cartas. Sempre desconfiei da gratidão. É como guardar as melhores xícaras pra visitas, pintar uma casa por fora e se mostrar simpático com todos nas festas de família. Quantas vezes Vô não tirou meu lugar da mesa pra dar pra algum primo, comprou presente pros filhos de amigos da rua e me deixou sem. Nunca entendi essa palavra, pra mim ela sempre foi prisão. Gratidão sempre me pareceu obrigação, e o contrário de qualquer coisa relacionada a carinho, mesmo que no dicionário diga o contrário. Cada palavra se torna aquilo que marca.
Na doença quem ficou no hospital com Vô foi Vó. Na casa fui eu. Nunca recebeu um telefonema dos amigos. Onde ficou a gratidão deles? Ele não tinha amigos, teve empregados, conhecidos, vizinhos e capachos, algumas mulheres e uma família de merda que ele construiu pra se esconder.
Quando mãe se matou, não deixou nada. Não culpou nem agradeceu. Morreu sem gratidão. Talvez ela também entendesse essa palavra como obrigação.
Agradecimento especial para Cax Nofre e Aline Macedo que colaboraram com esse folhetim até aqui. Muito obrigado.
Esse folhetim é um oferecimento Borboleta Azul, reavivando um formato muito popular no Brasil e no mundo. Ele tem como objetivo semear a leitura e despertar leitores, grandes nomes da literatura já escreveram folhetins como; Machado de Assis, Lima Barreto, José de Alencar entre outros, o texto era publicado em jornais.
Quem gostou da novela, pedimos que divulguem, espalhem por aí e se tiverem interesse em apoiar o trabalho do artista, fazer uma transferência bancaria, (como uma forma de comprar o folhetim) com qualquer valor (todo valor será repassado integralmente ao artista). As pessoas que colaborarem terão seu nome nos agradecimentos de cada capítulo (opcional. Se quiser seu nome, mandar e-mail pro [email protected] com seu nome), até o final da novela como uma singela homenagem.
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Marcelo da Silva Antunes nasceu em São Paulo, no dia 13 de junho de 1992, dia de Santo Antônio e de Exu. É Autor de VIVAVACA -2017, SP: Sem Patuá (editora Patuá) - 2018, Outros Cortes (Selo Borboleta Azul) -2019, Manifesto da hora que o couro come (Selo Borboleta Azul) -2020, e do livreto Velho, Velho Testamento - 2019. Editor do selo literário Borboleta Azul e da Revista Agagê80 (Brasil/Portugal) agitador cultural e oficineiro de escrita criativa.
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