Desço a rua com a pressa de uma pestilência que me empurra em passos grosseiros e, sem educação, xinga o motorista do carro que quase me atropela. O sol ofusca a minha vista e se desvanece o sagrado feminino honrado pelo sacrifício das feras. Elas cravam os dentes na minha carne e querem tudo o que é meu: querem sangue, não apenas o sangue do meu inferior, mas o sangue de um corpo inteiro.
Faço parte de uma irmandade nefasta que se quer liquidada, que se quer unida apenas no confronto, a única irmandade possível porque formada por filhas legítimas da contradição. Carrego o peso dessa presença no calor infernal de um outono febril e minhas veias incham acelerando a corrente de raiva. Raiva e nunca amor, apenas raiva eu sou.
Sou a raiva da Medeia que come seus próprios filhos – dentro de mim mato tudo o que fecunda. Sou a raiva da tia, Circe, com a perversidade de um banquete envenenado – homens porcos me servem no meu delírio. Sou a raiva das histórias da Xerazade histérica – minhas histórias não servem pra nada. Na cabeça ardente, ouço o grito das minhas irmãs: cale a boca, sua vaca.
Alguém esbarra em mim respondendo à minha violência, tropeço, quase caio, esburacada, no meio do concreto da calçada. Mas acelero o passo para terminar de vez essa via crucis maldita – quantas mulheres sangraram na cruz? Maria Madalena, Maria Bonita, La Malinche, duas mulheres de mãos dadas empunhando facões, o sangue escorre pelos cantos das bocas cheias.
Tenho ódio dessa condição nesse calor escaldante quando ainda que quisesse invejar o falo só vislumbraria um pêndulo lento marcando o passar do tempo. Ele passa lânguido sobre a minha carne, mesclando todos os gritos agourentos de todos os tempos que seguem ladeira abaixo na minha cabeça fervida pela zona sul da cidade. A zona asséptica da cidade, a zona que não admite putas.
Desço a rua a caminho do lugar que meu corpo é obrigado a ocupar, a escola e suas crianças virginais. Desço danando toda uma vida pelo trabalho, o sangue desce como o seu suor. As crianças me saúdam, lá embaixo: salve a professorinha de seus delírios de terror; essa vagabunda merece seu pesadelo. Um dia elas ainda vão me apedrejar.
Quando souberem que tenho a fome de um Golias numa pintura grotesca em que meu sangue molha o pincel, quando souberem dessa indignação maior que o grito da Medusa de cabelos maltratados, quando souberem da minha ânsia pelo corpo esquartejado do marido Matsunaga, quando souberem que me tomo de raiva e que hoje quero que tudo venha à danação, todos ainda vão me apedrejar.
“Doutoranda em Literatura Hispano-americana pela USP e membra do coletivo de escritories Infâmia formado no CLIPE 2019 na Casa das Rosas. Tem dissertação sobre a fotografia e a narrativa do mexicano Juan Rulfo. Tem conto publicado na coletânea Todos somos perigosos (Urutau, 2021). Seus demais textos estão sendo desengavetados lentamente, enquanto tenta entender a profundidade inebriante das gavetas”. Instagram: @adrieuyo | Facebook: @dribdasilva
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