O tendão de Aquiles – de Marcelo da Silva Antunes

Escutei um estralo. Meu corpo caiu. O time de colete vermelho teve que ficar com um a menos. O ala esquerda do time vai precisar sair de cadeiras de rodas. Uma sensação, um barulho e estou no chão. Perdi o equilíbrio. Ganhei o peso. Como a gente é frágil.

Tinha feito quatro gols já. Em seis partidas, cinco vitórias. Estava voltando a jogar bola em sequência depois de muito tempo. Já estava na terceira semana seguida. O esporte precisa de sequência, de ritmo. E nesse ano, tive infecção urinária, sinusite e covid. Cada doença um pouco do corpo foi atrofiando. Tenho me sentido fraco. Minha relação com meu corpo tem mudado.

Na quadra, estou sem celular, peço pra alguém avisar minha esposa, digo que rompi o tendão de Aquiles. Eu não tenho equilíbrio. O pé está inchado. Eles não consideram muito. Dizem pra por gelo. Tratam como se fosse uma luxação ou uma pancada. Eu tinha certeza. Era a lesão que o Adriano Imperador, o jogador, teve, é a flecha que fez Aquiles perder a força. Eu entendo como esse tendão pode parar um Deus Grego e um Imperador, um atleta muito forte.

Minha esposa manda um Uber me buscar. Ela deve estar muito brava. A gente pretendia tirar férias nos próximos dias, ela planejou tudo. Passagem de avião, Airbnb, a porra toda. Pensei na hora. Arrastei a viagem. Isso aqui é tendão, tô fodido. Isso é operação. E eu tô na dependência do SUS.

No SUS todo mundo é igual. Pelo menos no P.S de Santana numa quinta de noite. Pior que já estou me acostumando a visitar o P.S. Ainda bem que hoje é quinta. Aqui de segunda e terça é lotado. De final de semana é tenso pelos acidentes. Depende de sorte. Será que tem ortopedista essa hora no P.S.

Eu lembro desse P.S. todo fodido. Era o terror da molecada. Geral tinha medo de cair por lá. Na certa era tomar bezetacil. E AS. Isso era 2000 e pouco. Em 2022 deu uma melhorada. Mas ainda estou sentado na sala de medicação esperando pra ser internado. Não tem cama pra mim. Nem operam aqui. Não tem ultrassom aqui.

Na triagem a moça colocou meu código de urgência. O vermelho. Fui colocado em uma cadeira de rodas. E fui arrastado pra fazer exames pra lá e pra cá. O médico confirmou. Vai ter que operar. Minha esposa deve ter ficado puta comigo. Arrastei nosso rolê. Eu queria ver o jogo do São Paulo. Semifinal. Saí de casa tava 1 x 0. Precisava fazer 2 pra pênaltis ou 3 pra classificar.

Logo passo no ortopedista, acho que era ortopedista, ele diz que rompi o tendão. Só de olhar. Ele pega na minha perna, aperta minha panturrilha, e confirma, mas diz que será preciso operar.
“Vai ter que ficar aqui esperando a vaga, abrindo a vaga, você irá para o mandaqui provavelmente, aí lá o médico opera, dentro de uns 5 dias”.

A moça do gesso, enfaixa meu pé, ela tenta fazer uma piada, não entendo, tenta encarar a coisa com brincadeira, minha esposa está muito brava, comigo também, eu estou triste, ainda tentando ser otimista, esperando que isso seja um alarme falso, e que me recupere logo.
Vai ter que operar. Eu nem penso muito nisso. Já operei a vista uma vez. Minha esposa deve tá brava comigo. Mulher de herói deve saber sobre o sofrimento que é ser mulher de herói. O fardo delas sempre é maior, sem luta e sem glória.

Sei lá. Arrastei o rolê. Será que dá pra cancelar a passagem de avião? E a faculdade, será que vou ter que trancar o semestre? E o trampo? Tinha feito uma entrevista de emprego hoje, estava confiante, confesso que já estou muito cansado dessa vida de artista independente, pra quem não tem uma base financeira ou familiar, nem sorte, precisa ser muito forte, precisa ser mais forte que Aquiles ou Hercules, já que não somos filhos de Deuses.

Marcelo da Silva Antunes nasceu em São Paulo. É Autor de VIVAVACA -2017, SP: Sem Patuá (editora Patuá) – 2018, Outros Cortes (Selo Borboleta Azul) -2019, Manifesto da hora que o couro come (Selo Borboleta Azul) -2020, e do livreto Velho, Velho Testamento – 2019. Editor do selo literário Borboleta Azul e da Revista Agagê80 (Brasil/Portugal) agitador cultural e orientador de escrita criativa. Tem textos publicados em diversas revistas no Brasil e no Peru.