Procurei pelas ruas do Bixiga. Foi num sábado frio de garoa, numa pandemia que nunca acabou. O morro dos Ingleses e os prédios debruçados sobre as casinhas se perguntavam quem vai sobreviver nessa especulação viral. Tive que esperar a foto: ele sentado nas escadas úmidas do morro de concreto sorria para o celular que ela segurava a sua frente. Fui para o lado errado. Cheguei ao viaduto. Me lembro desse prédio pontudo refletido numa poça, pensei em tocar o interfone e dizer meu nome. O teatro estava do outro lado do viaduto. Ninguém me conhece. Oi tudo bem quanto tempo: meus amigos. Eu sou uma metralhadora em estado de graça, disse o ator. Os tempos se sobrepuseram no teatro. Piva é tão velho, é a ancestralidade dessa cidade, é a iminência da tragédia. O centro está cheio dos seus anjos verdes pisados no chão.
Saímos dali e fomos beber no estacionamento do hipermercado 24 horas. Me lembrei de quando fazia isso na praia. Era adolescente e queria destruir tudo. Agora, quero apenas me manter de pé. Então fomos para outro bairro. A água de poça se jogava ali também, aquela mesma que refletiu o prédio torto e pontudo na frente do viaduto onde esqueci meu nome. “É o Piva”, respondi ao interfone desconfiado e ouvi a construção gemer uma queda iminente – desabe sobre mim refletida na poça verde de anjo pisado, amém. Piva, sua metralhadora gracejava enquanto derrubava corpos aos seus pés. Pulei a poça e entrei no antro. As pessoas se roçavam, se remexiam, todos os corpos juntos. O ar era quente e ninguém usava máscara. A pandemia. Alguém abriu uma caixinha de cristais. Meti um debaixo da língua. Tinha que me esquecer de cor de poça de dança de morte, de tudo o que podia desabar. E este ato acabou.
Minhas mãos levitaram acima de todas as cabeças, eu sorria, eu cantava. Alguém me ofereceu alguma coisa, levei à boca, “cuidado! É lança!”, só queimou, estou bem, estou tão bem. Estou de pé, flutuando. Como eu amo, eu te amo. Olhei pela janelinha que dava na rua e lá fora amanheceu no meio da madrugada. Era dia dentro da cortina da noite. Lá fora, o cara do lança tirou do bolso um bolo de notas de cem reais e fez surgir uma cerveja que levei à boca. Umas pessoas esperavam sentadas na calçada do outro lado da rua, balançando cigarros na ponta de dedos sincronizados. Com as mãos livres, estalavam outros dedos. Lançavam olhares afogados. Todos esperávamos.
“After no buteco do Lasanha”, recitou apontando um caminho enuviado à nossa frente. De repente, éramos um séquito de ébrios encenando procissão pelas ruas amanhecidas. Ele nos dirigiu pelo centro da boca do lixo construindo um caminho perdido. Se ofereceu para carregar minha bolsa que queria se perder junto com a minha identidade, eu consenti. Não sei se foi ali que vi que era ele, já esquecida de que saí para procurar. Ele se pôs ao meu lado como se desde o início, desde quando pisei na poça verde no Bixiga, desde que pisei na poça do mar na areia escura da infância, desde a invenção da primeira poça, desde Téspis de Ática, o primeiro ator, desde todo o sempre ele estava me dirigindo naquela noite. Mas não é mais noite, agora é dia, ainda que na coxia à nossa espreita se respire a noite eterna. O cristal se diluía em meu coração sincopado com o estalar dos dedos mágicos.
O buteco do Lasanha estava fechado. Descemos então por umas escadas na frente do Love Story e lá dentro era azul. A música eletrônica estremecia nos ouvidos, tínhamos que gritar. Eu bati os pés no chão, como se esmagasse algo, como se comprovasse que eu não caí, como se assentasse a descoberta, a tinta verde manchando meu vestido. Ele trouxe mais cervejas e cuidou de mim. Em algum momento, duvidei. Decidi que tinha que ir embora porque não sei fazer mais do que procurar. Ele brigou comigo, não podia abandonar o palco. Não podia deixar nada, minha bolsa, meu celular, meu casaco, o anjo verde esmagado sob meus pés, a love story descolada de São Paulo. Fomos para outro bar.
Lembro do sol dourando uma esquina. O vento calmo e quase gelado. Ali, falávamos em sussurro, numa língua distante, o sol na ponta do olho. Ele era voz dentro do calor que sentia em mim. Respirei satisfeita observando meu peito inflar e desinflar. Alguém evocou a Praça Roosevelt e quando olhei de novo, era a praça, as escadas da praça, a música dum bar da praça. Meus pés pisavam forte o chão da calçada da noite que de novo se hasteava sobre minha cabeça tremida. Não tinha mais poça porque todos os seres rasteiros dançavam ao meu redor. Ele olhava por mim, com olhar de guarda. Era domingo e eu queria provar que não cairia no chão depois de mais de 24 horas de hiper-rolê.
Não pode acabar. Então vamos para casa. A casa que aluguei para que todos esses dias e noites fossem um só, para que todas os antros de pés e cabeças se juntassem sob o mesmo teto. Um teto preto na casa que aluguei onde penduraria na parede o anjo verde invertido, enquanto nos cheirávamos abraçados no sofá. A casa palco eterno da simulação de vida e morte. Eu sou uma metralhadora em estado de graça, disse o ator.
Vamos para casa, falei. Ele disse sim, amor. Que se dane, era amor sim. Achei em São Paulo.
crônicas Procurandamor
Adriana Bezerra da Silva
Dezembro/2021
“Doutoranda em Literatura Hispano-americana pela USP e membra do coletivo de escritories Infâmia formado no CLIPE 2019 na Casa das Rosas. Tem dissertação sobre a fotografia e a narrativa do mexicano Juan Rulfo. Tem conto publicado na coletânea Todos somos perigosos (Urutau, 2021). Seus demais textos estão sendo desengavetados lentamente, enquanto tenta entender a profundidade inebriante das gavetas”. Instagram: @adrieuyo | Facebook: @dribdasilva
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