Assim que ele pegou com os dedos o pedaço de pão das mãos dela, num súbito de infelicidade e desejo de mudança, a mulher quis voltar à amá-lo.
Estavam casados há quatros anos, e quatro anos nem é tanta coisa assim.
Nesse tempo, que se deu após os dois anos de um namoro que teve muitas alegrias sim, o amor rapidamente se transmutou em quase raiva, quase cansaço, quase descaso total.
Ela já cozinhava coisas que ele nem gostava tanto assim, ele já não se vestia com as cores que ela sempre disse que lhe caíam melhor.
Assim, excluídos da preferência um do outro, foram ficando cada vez mais afastados. Laconicamente afastados. Os silêncios do casal discutiam por horas à fio no quintal e na varanda (especialmente na varanda).
Os silêncios interpelavam-se na sombria paz daquela casa que parecia levitar entre o ressentimento e a apatia completa.
Samambaias morriam, séries eram abortadas antes do quinto episódio e a pizza era o assado desacordo entre eles. Sempre meia alguma coisa e a outra metade outra coisa, num sem fim de delivery’s que aconteciam dentro de um desacordo nunca dito, mas sempre percebido.
Mas quando ele pediu o pão e ela se viu na posição íntima de não dar o saco de papel, mas sim o pão em si, e ele, ao ver o pão nas mãos dela, quando apenas puxou um naco e se serviu da manteiga à seguir, fez com que ela, numa fissura pelo real, percebesse que aquele era seu marido.
Pegando pão. Marido. O seu irremediável marido, querendo ou não, gostando ou não, amando ou não.
Assim, enquanto a tarde caía por dentro do volume da janela da sala, ela, influenciada por aquele gesto de intimidade, tomou as rédeas.
Sorriu, ofereceu filmes, desistiu das séries. Deixou a camisa favorita sugerida no cabide mais explícito e ele, a surpreender a própria mulher, percebeu cada proposta e realizou cada desejo.
Pulou dentro de todos os convites.
Ela sugeriu um filme e ele viu e gostou do filme. Ela esticou os pés no sofá e ele os massageou em silêncio, como se aquilo não fosse coisa extraordinária, como se fosse óbvio que pés relaxados pedem mãos de marido atencioso.
E ele ficou assim sendo marido por horas, por meses.
Ela, esposa demais, esposa até que tudo aquilo fizesse sentido, entrou em comparativos profundíssimos.
Pensou se andava gostando dele porque havia aprendido a conjurar os sentimentos do tempo de namoro!
Mas não era nada disso!
No namoro ela gostava que ele fosse inconstante, tanto no sexo quanto contra o mundo. Agora, casada, nessa nova onda de paixão, gostava era da constância. Gostava de saber exatamente o ângulo e a posição qual o sexo acontecia entre os dois.
Gostava de não ter mais dúvidas se era destro ou canhoto, de saber que silenciosamente abominava Cabernet, embora nunca tivesse dito nem mesmo a ela.
Ele vinha, beijava, olhava de perto, beijava, ficava tímido, ela apalpava e o beijava voraz e com os olhos fechados.
Subia nele, apalpava mais e dizia “é mesmo?” e ele dizia “tá parecendo”.
Transavam sem criatividade alguma, mas dentro de um organizado de coisas que significavam a vida inteira. Sem acrobacias, gozavam. Ela, pela atenção da posse, pela obviedade da posse, pelo contrato explícito, pela fortuna de hábitos, pelo vínculo sumário.
Ele, pela sincronia dos acordos. Porque sabia que era entendido em seu silêncio de homem. Porque sabia que era visto em sua sombra masculina. Porque ela o adequava e o fazia sentir confortável dentro de sua natural incomunicabilidade.
Gostava de saber que sua mulher sabia a hora do sexo e sabia lhe dizer qual hora era essa. Ela gostava de fazê-lo entender qual a hora do sexo também. Eles gostavam de encontrar juntos a hora do ato.
Sabiam que um casal morre quando a comunicação telepática entre os genitais desaparece.
Ele gostava de saber que embora ela deixasse com ele as chaves dessa hora, era ela quem abria ou não a escotilha que guarda a fechadura das coisas.
Tornaram-se rádios transmissores, duas frequências 530 KHz até 1.600 KHz perdidas entre lençóis e o sofá.
Entre altos e baixos, dentro dos incontáveis problemas que poderiam dividir o casal porque dividem também a vida, depois do pão na mão dela naquela manhã nada extraordinária, foram mais felizes.
Resolvidos porque passaram a saber que felicidade se mede pelo número de hábitos que se compartilha com alguém, dormiam aliviados.
Marcio Tito é dramaturgo e diretor no coletivo que fundou em 2012, a Tragédia Pop. Entre 2015 e 2016 foi premiado como melhor autor no Concurso Nacional de Indaiatuba e no Concurso Nacional oferecido pelo Instituto da Memória. Em 2019 foi indicado como melhor autor, na categoria monólogo, no Festival Fescette, em Santos. Pela São Paulo Escola de Teatro é formado em dramaturgia. Atualmente trabalha como editor de arte e cultura no site Deus Ateu. É poeta e ensina dramaturgia.
Este site usa cookies e dados pessoais de acordo com os nossos Termos de Uso e Política de Privacidade e, ao continuar navegando, você declara estar ciente dessas condições.