O cavalo pula as peças intervenientes
Vida normal. Chaturanga amanhece com névoa e o barulho de um tiro:
– Não é por piedade, filho. Quando um cavalo quebra a pata, você mata o bicho porque ele não tem mais serventia.
Gleydison, oito anos de idade, ouve o pai e pisca os olhos com força quando a bala acerta o animal.
Alguns pássaros voam da moita. É inverno na fazenda. O velho limpa o cano da arma e faz o sinal da cruz. A chuva espalha a poça de sangue.
O corpo do cavalo é enterrado.
Depois, fica escuro e inchado.
Entra em decomposição.
O sódio e o potássio deixam de ser produzidos e o que resta do bicho é comido pelas bactérias.
A pele e os órgãos se desfazem e o cérebro derrete, num líquido viscoso.
Sobram os ossos e os dentes.
Vinte anos depois, não há mais cavalo.
Gleydison parte para a cidade com uma mala e barba feita. Com fome de ver carros e prédios.
Chega no canteiro de obras. Não tem emprego.
No bar para ser garçom. Não tem emprego.
Na boca. Tem emprego de sobra.
Esqueça o faroeste caboclo de perdição e redenção dos heróis. Do moço pobre que domina o tráfico e usa cordões de ouro. Gleydison sabe do perigo, junta uma grana e sai fora.
Agora é coveiro e cuida dos mortos.
Dona de casa, empresário e vendedor de picolés. Todo mundo tem foto, data de nascimento e de morte na plaquinha dos túmulos que ele limpa.
Todos sumiram, igual o cavalo, mastigados pela terra.
Gleydison mora num quartinho com colchão e TV. Tem gato net. Tem playstation 2. Tem android. Rouba o wi-fi do vizinho. Come hot pocket sadia. Espia a vizinha pelo olho da porta. Fala com cachorros na rua.
Rotina.
Até a filha do prefeito morrer.
A cidade inteira vai ao velório. Tem carro da imprensa e vendedor de churros na porta.
Coroas de flores chegam da mão de entregadores, que fazem o sinal da cruz antes de entrar:
– Meus sentimentos, prefeito.
Corta para o repórter ao vivo:
– Nina tinha oito anos de idade…
Corta para as mulheres chorando:
– A comoção tomou conta da cidade. Os familiares não quiseram falar com a nossa equipe de reportagem.
O câmera corta para Gleydison, ao vivo, beijando a testa fria de Nina.
A menina levanta do caixão e pergunta pela mãe.
Uma velhinha grita:
– É um milagre!
O santo da vez
São doze horas e treze do dia quatorze e Gleydison recebe quinze pedidos de entrevista, no quarto dezesseis. Dezessete e cinquenta é o preço da meia marguerita, meia alho poró que ele pede ao telefone:
– É o Gleydison? Não precisa pagar. Deus é mais.
Está trancado há duas semanas. Recebe cartas e frangos da padaria. Conhaques, Marlboro light e um vinil raro do Waldick Soriano.
Não se fala de outra coisa além de Gleydison e de Melquiades.
Gleydison é declarado o santo da vez pelo milagre do beijo.
O Melquiades só foi expulso de novo na várzea mesmo.
O coveiro recusa a alcunha de santo a todo custo. A população e os repórteres fazem vigília na frente do prédio. Ninguém ousa invadir.
Acreditam, como qualquer santo, que ele sabe a hora certa de aparecer.
Emissoras prometem uma entrevista exclusiva.
Ambulantes vendem camisetas com a foto de São Gleydison do Beijo Sagrado. Aceitam maquininha, débito e crédito.
Bebês que nascem naquele dezembro levam o seu nome.
Até que Gleydison, acuado e sem intervenção divina alguma, decide que não aguenta mais frango assado e junkie food. Ninguém aguenta essa merda todo dia.
Resolve sair até a janela. Acena timidamente. Depois, mais rápido e com força.
–Jogue suas bênçãos, São Gleydison do Beijo Sagrado!
-Pelos poderes de Gleydison! –grita outro.
Ele atira as caixas de pizza e os fiéis se digladiam. Gleydison se diverte. Ele joga então meias, pôsteres de filmes rasgados, embalagens vazias de xampus, um peixe-beta, dois pares de calçados e um copo de requeijão que bate no meio-fio da sacada e não quebra:
– Abençoado seja o nosso santo!
Gleydison manda um zap para Bonner e promete uma entrevista exclusiva para tarde da noite.
O santinho da vez
Gleydison vai aparecer no Fantástico. Dá tempo de exibir a chamada durante três dias e vender o espaço de propaganda por uma grana alta.
O Brasil inteiro quer conhecer o santo brasileiro que não reza a missa da igreja e ressuscita defuntos com um beijo sagrado.
É domingo. Faustão, de camisa psicodélica, se despede com pegadinhas “inéditas” de 1993.
É fantástico, tãm!
Simulações de dinossauros em 3D, enquete, animais selvagens, os gols da rodada e os cavalinhos de pelúcia de voz irritante.
Já no final do programa, Gleydison está à vontade, de gel no cabelo e camisa com gola rolê. Faz um apelo sério e diz que não é santo, como se tivesse escolha.
Em casa, decide pelo suicídio. Mas santo que é santo não se mata. Angustiado, mal come.
Preso em casa, já não aguenta mais tanto barulho e sufoco. Liga o gás da cozinha e enfia a cabeça no forno, como um avestruz urbano e desesperado.
Uma pedra arrebenta a janela da sala. Vê um papel amarrado num teco de concreto, do tamanho da palma da sua mão.
Lê o bilhete ainda zonzo, enquanto desliga o gás:
Santo é o seu nome e quero lhe fazer o novo prefeito.
Me procure na terça, às 10h14.
Um abraço,
Zé Beltrão.
Gleydison sai cedo, no carro oficial enviado pela prefeitura. Serviço público em prol do santo, num estado laico. Coisa normal.
Amém.
Ele palita os dentes e coça a virilha na frente de Bob Esponja, segurança das antigas e que faz o sinal da cruz quando Gleydison chega na prefeitura. Minutos depois, entra apreensivo na sala do prefeito.
Na mesa, da esquerda para a direita, estão sentados os bispos Cosme e Damião, o jornalista Pedro Ratha e o prefeito Zé Beltrão.
De costas, olhando pela janela, está o assassino Corta Goela:
-Bebe alguma coisa?
– Hi-fi, sem gelo, pouca laranja.
The Flash, o mordomo, serve o santo.
O papa mandou um abraço
O acordo político foi selado com um brinde e um tapinha nas costas. Gleydison foi eleito meses depois com 92% dos votos úteis. Tem sempre ateu e gente que vai para a praia e justifica.
Tinha carro e cheque em branco. Tornou-se inacessível ao povo. Santo faz milagre e não reunião participativa.
A imprensa achou estranha essa história de igreja e política, por menos estranho que isso pareça hoje em dia, mas o caixa estava cheio para calar a boca de todos os jornais.
Um anúncio colorido e uma verba por fora fechava a boca de Pedro Ratha, um dos maiores apoiadores da campanha. Corta Goela lhe garantia a segurança.
Até alguém instalar gravadores nas salas de reuniões e descobrir o esquema.
O papa diz, na sacada do Vaticano, que não reconhece os milagres de São Gleydison.
Cosme e Damião tratam de espalhar a bomba aos fiéis.
O jornal noticia os desvios de verba pública em reportagem especial.
A filha do prefeito morre, duas semanas e meia depois:
– Deve ser o inferno astral, diz The Flash.
Zé Beltrão se distancia. Pedro Ratha muda de lado. O povo, que fez alvoroço, para. O povo tem sempre essa de fazer alvoroço e depois parar as coisas.
Corta Goela não, esse era fiel. Prometeu a Gleydison matar quem lhe virasse as costas.
Gleydison pede a ele para apagar todo mundo, sem privilégios, em ordem alfabética.
Só que Corta Goela é encontrado morto na manhã seguinte.
Gleydison se vê acuado, junta uma grana e arruma a mala.
Compra uma passagem com o nome de Flash Gordon para o Uruguai.
No muquifo mofado em que se esconde recebe numa caixa uma peça de xadrez.
Um cavalo manchado de sangue.
É morto numa sexta-feira com dois tiros na cabeça por Bob Esponja, enquanto coloca na mochila as suas cuecas do Superman.
Gleydison não tem mais serventia.
Gleydison virou cavalo.
O milagre
O bacalhau gelado anunciava o fim do almoço. O túmulo de Gleydison era filmado pela equipe de reportagem no domingo de Páscoa.
Gleydison então se levantou e flutuou, com um manto branco. Subiu aos céus com um sorriso no rosto, a aura leve e as mãos a abençoar a cidade de Chaturanga.
Vai passar domingo no Fantástico.
Angelito é jornalista, assaltante de geladeira e comedor de crases