Luciano, quem é ou pode ser seu livro?
O poeta Bruno Sanctus que escreveu a orelha deste livro me disse que Contando Veias é como um jogo de fractais, já o também poeta e editor Claudinei Vieira disse que é um livro sensorial, você Marcelo que fez uma leitura antecipada do livro, disse que ele te soa uma propaganda de cigarros mais atualizada. Em resumo, são muitas impressões e sensações de quem o leu. Mas falando por mim, eu o considero um buraco. Contando Veias é um exercício em lidar com a depressão – que por muito tempo me atacou e por vezes ainda faz as suas aparições sem avisar. Um passeio por uma dor contínua da qual você não entende, mas sabe que ela existe, ela está ali, na sua cabeça distorcendo sua visão, igual ferrugem; distorcendo o pouco que resta de realidade ou se esvaindo junto com a fumaça de um cigarro atrás do outro. Não há redenção para os fumantes e muito menos para os depressivos. A única fuga é o click do aplicativo de relacionamento, buscar estranhos para um encontro estranho depois de um bate e volta de perguntas e respostas previamente ensaiada por ambos. Tudo para que no final role uma foda e cada um siga para a sua casa no amanhecer. Contando veias tem de tudo um pouco do que os leitores dizem e acredito também que seja uma história de amor de um homem com os seus cigarros dentro da Opera Urbana chamada São Paulo. Opera esta que tem seus personagens pairando feito fantasmas por aí, prostíbulos como o My Love, o Gerente, o Guitarrista do Língua de Trapo que está na noite tocando num boteco sujo, um homem que se diz ex roadie do Elton John, a Mercearia São Pedro e o pouco que resta das reminiscências de um Nick Cave apaixonado por uma brasileira vivendo nessa colônia contemporânea chamada Brasil. Tudo isso entre um cigarro e outro, remoendo mais fantasmas – agora os imaginários – dialogando com o Malboro Man, o Bebê fumante indonésio e o peruano Júlio Ramón Ribeyro. Contando Veias é um buraco sem fundo com pausas paliativas em busca de cigarros e Esperanza.
Textos do livro:
1.
Naquela época, havia aprendido com Julio Ramón Ribeyro a importância do cigarro na vida do cidadão comum. O cigarro, esse pequeno objeto fabricado para a nossa destruição prazerosa e lenta, tem a serventia de fazer o que poucas coisas na vida fazem: amenizar o tédio de um dia comum. A autodestruição tem uma função social não dita e não refletida por muitos. Ela consegue fazer o tédio sumir aos poucos, e a vida vira um prazer a cada baforada vazada pelas narinas e pela boca, circulando pelos pulmões previamente apodrecidos. A possibilidade de brincar de Deus formando diferentes objetos e coisas com a fumaça torna a experiência fabulosa. Fumava há pouco tempo e havia descoberto esse prazer tardiamente — o que me deixava triste —, mas o aproveitava com certo esmero e cuidado, como quem degusta uma coxinha amanhecida por aí. Inicialmente, meus fumos eram cobertos por um prazer comum e não menos belo: o prazer da descoberta. Assim que trilhei esse caminho sem volta, percebi que fumar maconha com os engajadões políticos de sindicatos, aspirantes a políticos de beira de bar, professores fracassados e roqueiros indies de condomínio não tinha o mesmo prazer. No fundo, era enfadonho demais. O cigarro, assim como o crack e a cocaína, eram para mentes e corações selvagens. Aos maconheiros desconstruídos, meu mais singelo desprezo. Julio escreveu alguns livros, mas o Só para Fumantes era algo pra poucos. Apenas para os espíritos livres apodrecidos.
2.
Quando cresci, ganhei um poodle do meu padrasto, mas que ficou apenas três dias em casa. Não tive tempo de desenvolver qualquer técnica de enforcamento ou coisa que o valha, uma pena. Eu já praticava o holodomor antes de conhecer Josef Stalin, matando pássaros e hamsters de fome. Olho até com certo orgulho meus feitos infantis. Sobrevivi a toda onda de ódio consumido continuamente como soda cáustica. Hoje, penso que vivo meu lado brando. A velhice faz você se compreender, compreender seus limites e os dos outros. Fugir do excesso tornou-se para mim uma missão de sobrevivência. Hoje, se pudesse, certamente mataria alguém, mas com motivos muito mais óbvios e que tivessem lógica para mim. Algo extremo como salvar algum familiar de uma morte iminente. De resto, sinto que matar esses pequenos animais era só uma forma de fugir do tédio, de não enlouquecer de ódio, tristeza e desesperança. Por vezes, me pego pensando ainda sobre todos os animais que matei na vida. Será que eles aceitavam a própria existência sem se questionarem? E, se tives-23 sem algum tipo de inteligência, como me viam? Com medo? Como um doente em estado de graça? Havia opiniões contrárias? A comunidade dos animais indefesos frequentavam terapeutas para superar os traumas sofridos? Ainda não obtive respostas sobre. O que sei hoje é que prefiro ser um cão adormecido. Um doente à base de tarja preta, um sonâmbulo, uma múmia, e só.
3.
Felizes são os coliformes fecais.
Para saber mais sobre o livro e adquirir entre no site da editora Desconcertos
Luciano Portela é professor e roteirista. Lançou os livros Carolina foi para o Bar exibir seus lindos pés (2014), Tudo que Afeta o Movimento (2017), ajudou na organização da coletânea de Contos A Última Canção (2018) e Contando Veias (2021)