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O Cavalo de Chaturanga – um conto de Angelo Tiberio
23 de dezembro de 2020
E foi quando eu dancei para o silêncio que ele nasceu
2 de fevereiro de 2021
Publicado por borboletaazul on 29 de janeiro de 2021
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  • Literatura
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James Joyce, o cronista esportivo

Ainda modorrento, Donald Murphy, o juiz, abriu sua janela para a rua e permitiu que a luz da manhã açoitasse seu rosto. Com olhos de claraboia, pigarreou.  

— Pondus humeris mundi.

Lá embaixo, na calçada, o velho Liam Walsh parou de varrer as folhas secas que fugiam das árvores do Blessington Street Basin e olhou para o vizinho.

— Desperte para a vida, seu lambebotas, o ancião disse. Hoje, beberemos o sangue dos malditos ingleses, hein?

Murphy fez duas cruzes rápidas sobre a testa antes de alçar o dedo médio para o interpelador.

— Vá a merda, múmia resmungona, ele respondeu. Não sou eu quem deve empurrar a bola para as redes.

Expectativa demais para uma partida amistosa. Com certeza, ninguém na Inglaterra dá tamanha importância ao embate quanto em Dublin ou não teriam permitido a escalação de um trio local na arbitragem. Que peguem no pé do O’Sullivan, aquele ponteiro vesgo.

Gael O’Sullivan pegava as fatias de fígado fritas com as mãos, mordiscava-as algumas vezes, sorvendo o óleo antes de devorá-las, e limpava os dedos gordurosos na borda da toalha de mesa. Anne odiava esfregá-las no tanque depois. Em dia de jogo, porém, ela mantinha as palavras secarem na boca.

— Faça um gol para mim, ela disse.

— Por Deus, mulher. Já prometi gols a toda a Irlanda.

Até parece que um zarolho como ele chutaria tantas vezes na direção certa para satisfazer uma nação de bárbaros. Melhor seria se continuasse praticando com a bola ovular da época em que jogava rúgbi no colégio. Como atual reserva do craque Byrne, ninguém reclamaria se entrasse no final do segundo tempo para isolar uma ou outra bola nas arquibancadas. A titularidade não lhe cabia. Que o diabo o enforque, O’Connor, zagueiro imprudente, por lesionar o melhor jogador do time em um simples treino. Ao Mr. Doyle, o treinador, não sobrou outra penitência do que escalar O’Sullivan dois dias antes do jogo contra os ingleses.

Ryan Byrne saltitava com a ajuda de um par de muletas, ao entrar nos vestiários do Lansdowne Road. Distribuiu sorrisos aos faxineiros. Eles interromperam os afazeres, boinas ao ar. O Pato Dourado e seu caminhar curto e envergado, tornou-se um pato manco, ainda que elegante. Cinco para as dez da manhã. Lavanda, latrinas com perfume de lavanda. Logo o ar será tomado pelo azedume do suor dos rapazes. O primeiro a chegar nem pisará no gramado.

Os covardes morrem muitas vezes antes de sua morte.

Os valentes morrem uma única vez.

Foi um erro prometer um gol a Anne? Um atacante perneta não cumpre promessas. Ironias das ironias. Tomo o lugar de Gael em um campo, ele toma o meu em outro.

— Arre! Meu amuleto, graças ao Senhor!

Mr. Doyle, o treinador, masca uma gama de tabaco e cospe enquanto fala.

— Quero você do meu lado no banco. Não interessa como vai fazer para subir as escadas.

As grades tremeram com a entrada das duas seleções e o trio de árbitros. Por último, surgiu Jerry O’Connor, o zagueiro pédechumbo, com Byrne nos ombros. Quebrou, tem que carregar. Buuuuu! Os torcedores não perdoaram o fogo amigo que tirou o Pato Dourado do embate com os ingleses. Kiara McCarthy agitou uma bandeirola tricolor e apontou o ídolo nas costas do réu para que todo o tribunal festejasse.

— É o Byrne, Ryan Byrne!

— Aquiete-se, querida, o Sr. John McCarthy, o alfaiate, disse. Não me constranja na frente dos meus clientes.

— Seus clientes estão ocupados gritando. Byrnie!

Kevin Murray, proprietário do Murray’s Pub, também reconheceu o atacante e puxou Jailson Quinn, o advogado de patentes, pela manga do paletó.

— Um urra para o Pato!

— Vamos esfolar esses ingleses por você, Byrne!

Oliver Moore, o industrial de Liverpool, escondia o rosto sobre seu pork pie. Vinte anos ouvindo essa merda, seja nos bares ou no estádio. Mas ainda batem à porta da minha fábrica para pedir emprego, irlandeses ingratos.

A cada cinco minutos, o capitão Brendon Gallagher retirava seu relógio do bolso. Havia apostado com o professor Stephen O’Reilly que o primeiro gol irlandês sairia no primeiro tempo. Sentados a três fileiras de distância, eles se entreolhavam sempre que o goleiro inglês era acionado. Fiuuu! Bola para a linha de fundo. O’Reilly limpava a testa e respirava aliviado.

Com o queixo apoiado no pegador de sua bengala, Duane MacHugh, o farmacêutico, parecia uma estátua, olhos vidrados no campo. Nunca se importou com futebol, mas, céus, adoraria ver os imperialistas se engasgarem com a própria comida. Toda vez que O’Sullivan chutava por cima do gol adversário, ele saía do transe, pulava da cadeira e mordia a cartola. Vesgo dos infernos!

— Escanteio, gritou o menino Tommy. É nossa. Pai! É nossa!

— Primeira vez que esse aí acerta o gol, filho, disse Tyrone Smith, virando-se para a Sra. Smith. A sorte está mudando de lado.

— Ué, o goleiro pode colocar a mão na bola?

— É escanteio, mãe. Olha lá!

Enquanto Barry levava a bola para o canto do campo, O’Connor, o zagueiro, aproximou-se de O’Sullivan.

— Fica na entrada da área, zóio, ele disse. Escoro para você.

— Estou sem sorte hoje. O Byrne devia estar aqui.

— Tirei o Byrne da jogada. Agora faça a sua parte.

— Não sei se entendi.

— Pergunta para a sua mulher se ele não prometeu um gol a ela.

Será? Byrne e Anne? Não faz sentido. Ou faz? E ela me pediu um gol esta manhã. Não é possível. Definitivamente, não.

Bola lançada na área. O zagueiro irlandês, com seu corpanzil, bloqueou dois adversários no jogo aéreo e cabeceou com a orelha, em direção ao meio-círculo. O’Sullivan pegou de primeira, com raiva, um chute forte, mas sem direção. Sairia à esquerda do gol, não estivesse ali Donald Murphy, o juiz. A bola rebateu em seu joelho e entrou logo abaixo do travessão inglês, estufando a rede.

Já o segundo tempo foi bem monótono.

Alex Xavier é um jornalista refugiado na ficção. Autor do livro de contos “O Teatro da Rotina” (2018, Patuá), participou das coletâneas “Não Pretendia Criar Discórdia” (2017, Giostri), “Eros Ex Machina” (2018, Alink), “Era de Aquária” (2019, Oito e Meio), “Ruínas” (2020, Patuá), “Isolamento” (2020, Caos e Letras), “Kriptovisões do Futuro” (2020, Alink), e “Mundo-Vertigem” (2020, Alink). Integrante do coletivo Discórdia, produz zines para feiras de publicações independentes, ministra oficinas de escrita criativa e colaborou com revistas literárias como Gueto, Subversa, Vacatussa, Intempestiva, Torquato e Submarino.

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