O vigésimo quinto livro da escritora e jornalista espanhola Rosa Montero foi, certamente, um dos livros mais curiosos que já encontrei. É um texto riquíssimo e bastante fluido, que mescla a história do relacionamento da grande cientista Marie Curie com seu marido Pierre, igualmente cientista, e a história da própria autora em seu processo de luto diante da morte do marido, Pablo. Em outras palavras, é uma verdadeira miscelânea: uma espécie de mini-autobiografia que se confunde com vários aspectos da vida de outra pessoa, no caso, Mme. Curie, cuja figura foi cuidadosamente estudada por Montero, que utilizou como base várias biografias da física e química polonesa. Por que, no entanto, Montero escolheu justamente Mme. Curie para esse relato?
Maria Salomea Sklodowska, mais tarde conhecida como Marie Curie, foi uma grande cientista de origem polonesa que se naturalizou na França, e foi responsável por pesquisas pioneiras no campo da radioatividade. Foi, também, a primeira mulher a ganhar um prêmio Nobel e, não obstante, a primeira pessoa e única mulher a ganhá-lo duas vezes, em áreas diferentes. Também foi a primeira mulher a ser aceita como cátedra na Universidade de Paris. Enfim, como a própria Montero menciona várias vezes, uma mulher radioativa: uma mutante. Ao lado de seu marido, o também cientista Pierre Curie, que conheceu quando já havia se estabelecido em Paris, Marie conduziu pesquisas inovadoras que resultaram na descoberta de dois novos elementos químicos: o polônio e o rádio. Por aí, vemos que era mulher grandiosa, que tinha tudo para ser feliz e realizada. Montero, no entanto, nos mostra uma faceta diferente de Mme. Curie, mais íntima e humana.
Marie Curie, além das inúmeras barreiras que tivera de enfrentar pela sua condição de mulher, também passou por um intenso processo de luto após a morte de Pierre. Em seu diário, que está inserido como apêndice na edição da Todavia, descobrimos que logo após o repentino atropelamento que culminou na morte de Pierre, Marie guardou o lenço com o qual ela limpara o rosto do cadáver, que havia sido atingido pela roda de uma carroça. Parte do sangue e dos miolos de Pierre (sim, foi uma morte violentamente feia) grudaram no tecido do lenço, mas Marie o guardou mesmo assim, sem lavá-lo e escondendo de todos, até que posteriormente teve de queimá-lo. Pensem em como deve ter sido chocante o momento em que Marie viu o rosto de seu marido, seu grande amor e fiel amigo, esmagado, ensanguentado e já completamente sem vida. Não é uma cena que a maioria de nós, creio eu, gostaria de ver…
E, ainda, pensem vocês, na ideia de, repentinamente, nunca mais verem uma pessoa que tanto amam. Visualizem seus pais, suas mães, seus namorados ou namoradas, suas amigas ou amigos, seus irmãos ou irmãs, seus avós e parentes, ou, até mesmo, um bichinho de estimação que você ganhou quando criança e que convive com você desde então. Pensem, agora, na ideia de que hoje mesmo, vocês nunca mais podem vê-los, independentemente do motivo de sua partida, já que existem processos de luto que não se dão necessariamente com a morte de alguém, podendo ser uma separação, uma mudança de moradia ou um desaparecimento. O luto, aqui, enseja a ausência de uma pessoa querida, não importando a causa dessa ausência. Por fim, pensem, agora, no fundamento dessa ideia e na trivialidade de acontecimentos da vida humana, como a morte, por exemplo. Não chega a ser ridículo? Somos seres fugazes e todos sabemos disso, o que deveria ser motivo suficiente para não lamentarmos tanto a ausência de alguém. Sabemos, em contrapartida, que não somos seres tão simples e lineares assim. Não é à toa que o título escolhido pela autora foi A Ridícula Ideia de Nunca Mais te Ver.
Montero viu em Marie tudo que ela sentiu ao enfrentar a morte de Pablo, seu marido, que faleceu em decorrência de um câncer. Essa ausência tão abrupta que nos faz “sair do tempo”, como a autora escreve, forçando-nos a perceber, através da falta que uma pessoa querida nos faz, o que é realmente importante em nossas vidas. Apesar de o livro aparentar ter uma sintonia triste e enganosamente mórbida com a experiência de Marie, a autora suscita diversas questões, não somente em relação ao luto, mas em relação à condição da mulher, aos relacionamentos entre homens e mulheres, e às nossas percepções da vida, da morte e da dor. Em suma, Montero nos guia com maestria nessa obra indefinível a várias reflexões sobre a condição humana, e desbrava, sem fraseados difíceis, sobre a sabedoria de entendê-la e aceitá-la, por meio de sua própria experiência e da experiência inusitada de uma mulher que, tendo sido maior que sua própria vida, foi tão humana quanto todos nós.
Geórgia Vuotto é Graduanda em Direito pela PUC-MG. Amante das Ciências, Letras e Artes.
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